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Música e resistência: o pioneirismo de Elza Soares no Brasil

Quando penso sobre algumas das maiores referências da música popular brasileira, é impossível não lembrar da voz rouca e inconfundível de Elza Soares. A cantora se destacou por hits como "A Carne" e "Dentro de Cada Um", nos quais expressava suas convicções e lutas.



Elza sempre esteve à frente do seu tempo, abordando questões de empoderamento feminino, antirracismo e resistência. Seu ativismo se manifestou não apenas nas músicas, mas também em sua vida pessoal, enfrentando grandes batalhas em diversos momentos da vida.




A voz do milênio


Nascida em 20 de janeiro de 1930, no subúrbio do Rio de Janeiro, Elza teve uma infância marcada pela pobreza e pelo casamento forçado aos 12 anos, que resultou em sua primeira gravidez aos 13.


Filha de operário e lavadeira, sua condição de mulher pobre a obrigava a se dedicar aos afazeres domésticos desde pequena. No entanto, ajudar a mãe a despertou para o canto – e forjou a voz potente que a tornou uma das maiores intérpretes não só do Brasil, mas do mundo.


Iniciando sua carreira artística ao vencer um programa de calouros de Ary Barroso na Rádio Tupi, Elza consolidou sua trajetória ao lançar 34 discos e receber o título de "A Melhor Cantora do Universo" pela BBC, em Londres, no ano 2000.


Contudo, sua jornada foi permeada por desafios e a difícil busca por reconhecimento em um cenário marcado pelo preconceito. Durante o casamento arranjado, ela sofreu inúmeras violências físicas e sexuais. Aos 21 anos ficou viúva.


Cerca de 10 anos depois, conheceu o jogador de futebol Garrincha, com quem teve uma paixão e um relacionamento conturbado, sendo, mais uma vez, vítima de violência doméstica.



Além de todas essas agressões, Elza também foi perseguida pela ditadura militar (1964-1985). Esses foram alguns dos fatos que fizeram a cantora do milênio se tornar um ícone da luta feminina.


Do samba à resistência


Sua carreira marcada por rupturas, resistência e reinvenções não apenas consolidou seu status como uma das vozes mais importantes do país, mas também preparou o caminho para as gerações seguintes de mulheres negras na música.


A trajetória da artista, iniciada nas décadas de 1950 e 1960, coincidiu com um período de ascensão cultural e transformações sociais no Brasil. Ela surgiu como uma sambista nos anos iniciais, enfrentando os desafios de um cenário musical dominado por estereótipos e marginalização racial.


Contudo, a cantora não se limitou a conformar-se com as expectativas impostas pela sociedade. Desde cedo, ela abraçou a identidade de mulata, embora, ao longo do tempo, essa identificação tenha se tornado tanto um ponto de concessão quanto de resistência.


O estigma da mulata, fortemente presente nas letras e representações da música brasileira da época, refletia uma visão hipersexualizada e limitada da mulher negra. No entanto, ao incorporar esse estigma, a cantora transformou seu corpo em um dispositivo político, utilizando-o como meio de inserção e visibilidade no cenário musical. O corpo feminino e negro de Elza Soares se tornou, assim, um veículo de resistência, desafiando as normas preconceituosas e redefinindo as possibilidades para as artistas negras futuras.


Ao longo de sua carreira, Elza também experimentou diversas fases musicais, transitando entre o samba, a Bossa Nova e o Tropicalismo. Essa versatilidade musical não apenas a consolidou como uma artista talentosa e inovadora, mas também demonstrou que as mulheres negras podiam transcender rótulos e estilos preestabelecidos pela sociedade.



A herança de Elza Soares


Como dito antes, Elza Soares já era símbolo de empoderamento feminino, representatividade, antirracismo e feminismo muito antes desses termos serem incorporados nos atuais debates no Brasil e no mundo. Não foi a toa que ela desempenhou um papel fundamental na abertura de portas para novas artistas no contexto da luta antirracista e feminista. 


“Nossa luta não é de agora. Isso vem de tempo, a gente luta muito, buscando um momento de vitória. Estamos neste momento agora. As mulheres estão mais livres. Nós estamos juntas, vamos nós, porque a gente junta faz uma guerra e uma vitória”, disse ela, numa entrevista em 2020, ao falar sobre feminismo e empoderamento.

Talvez o ápice da carreira de Elza Soares foi com o aclamado álbum "A mulher do fim do mundo" (2015). O sucesso desse trabalho não apenas reafirmou sua relevância, mas também abriu espaço para discussões mais profundas sobre questões sociais, políticas e raciais por meio da música. As faixas desse álbum exploraram temáticas intensas, como a violência doméstica e a condição da mulher negra, contribuindo para uma narrativa mais ampla de resistência e empoderamento. 



A sequência da trilogia, composta pelos álbuns "Deus é Mulher" (2018) e "Planeta Fome" (2019), apenas consolidou Elza como uma voz forte do feminismo negro.


O legado de Elza Soares transcende décadas, influenciando diretamente a nova geração de artistas negras que emergiram nos últimos anos. Seu papel como pioneira, tanto na música quanto na quebra de paradigmas, abriu portas e inspirou outras mulheres a trilharem caminhos similares. Artistas como Karol Conka, MC Carol, Flora Matos e Ajuliacosta podem ser vistas como herdeiras desse legado, cada uma contribuindo para a construção de uma narrativa musical que desafia estereótipos e promove a inclusão.


Sua contribuição para as lutas sociais, por meio da música, cria um grande exemplo para a nova geração de artistas negras, encorajando-as a abraçar sua identidade, a resistir às amarras do preconceito e a usar sua arte como veículo de transformação social.



O caminho aberto por Elza Soares é, portanto, uma inspiração para a contínua busca por igualdade e justiça no cenário musical e na sociedade como um todo. Sua história é um testemunho de resiliência e determinação diante das adversidades. Apesar de a cantora do milênio enfrentar preconceitos e desafios, sua arte continua como um legado poderoso.


Mesmo após seu falecimento em 2022, aos 91 anos, Elza permanece uma inspiração para as gerações futuras. Ela foi, sem dúvidas, uma das vozes mais expressivas da música brasileira. A artista era dona de um cantar potente, eclético, inovador e único.


A voz do milênio sempre será um exemplo de resistência através de sua história e seu canto.






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